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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

DECRETO REGULAMENTAR NO SISTEMA BRASILEIRO GERALDO ATAUBA· SUMÁRIO

http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/32548/31364


DECRETO REGULAMENTAR NO SISTEMA BRASILEIRO GERALDO ATAUBA· SUMÁRIO: Tradição constitucional. Poder regulamentar. O regulamento é ato administrativo sujeito ao princípio da relação de administração. Limites sistemáticos ao poder regulamentar. Instruções ministeriais. Explicação teleológica do regulamento. Principio hierárquico e poder regulamentar. Considerações finais. 1. AD cuidar da competência privativa do Presidente da República, a carta constitucional dispõe caber-lhe: "lI - Sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução" (art. 83). Igual disposição continha a Constituição de 1946 (art. 87, I) com a única diferença que a primeira e segunda parte do mandamento estavam aproximadas pela conjunção e, ao contrário da redação atual, que justapôs a segunda à primeira, mediante simples vírgula. Nenhum significado tem a alteração ora introduzida, bem como nenhuma conseqüência prática. De forma absolutamente idêntica dispunham a Carta de 1937 (art. 74, a) e a Constituição de 1934 (art. 56, 1.0). Quase igual era a correspondente disposição da Constituição de 189'1 (mantida, nesta parte, pela reforma de 1926) . Assim se redigia: "Art. 48, 1.0) Sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e resoluções do Congresso; expedir decretos, instruções e regulamentos para sua fiel execução". Naquilo que interessa ao estudo da disciplina constitucional do poder regulamentar, a essência é a mesma, desde que só as instruções foram suprimidas nos textos posteriores, sem nenhum prejuízo para o conteúdo do dispositivo. A Carta do Império, à sua vez, não dispunha de modo diverso; ao tratar das atribuições do Imperador, como chefe do poder executivo, que exercitava "pelos seus Ministros de Estado" (art. 102), previa dentre "suas principais atribuições"; "12) Expedir os decretos, instruções e regulamentos adequados à boa execução das leis". A simples leitura dos textos constitucionais referentes à matéria permite verificar ser da nossa mais arraigada tradição a inteira submissão do poder • Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. R. Dir. Adm. Rio de Janeiro !11: 21-85, jul/set.l_ 22 regulamentar à lei. É que - como muito bem salienta PONTES DE MIRANDA - o Estado legalitário é a mais avançada e perfeita forma de estado de direito. Não se contentaram os modeladores de todos os nossos regimes constitucionais em fazer do Brasil um estado de direito, mas timbraram em dar fôrça constitucional ao princípio da legalitariedade. Estado de direito, sendo o direito contido na lei. O confronto dos textos pertinentes ao assunto, desde a instauração do primeiro regime constitucional, até hoje, permite verificar um aperfeiçoamento do instituto e a deliberada concordância sôbre seu preciso significado. A retidão, rigidez e segurança da linha traçada, à sua vez, evidenciam a robustez do princípio, cujo exato alcance começou a ser fixado pela doutrina e pela jurisprudência, desde o Império. Esta retilínea convicção - que sobreviveu a tôdas as reformas e vicissitudes da vida político-jurídica nacional - gerou um notável acervo de medita- ções e experiências, testemunhadas nos escritos dos nossos melhores juristas e nos arestos dos nossos mais acatados tribunais. A matéria é daquelas que não pode comportar muitas dúvidas. As premissas e bases das questões a ela relacionadas são sólidas, bem assentadas e já arraigadas no solo fértil da consciência jurídica nacional. Tão provecta é a tradição, tão firme a convicção em tôrno dos princípios que informam o assunto, que são perfeitamente aplicáveis à inteligência do atual regime desde as lições mais antigas, como as de URUGUAI, PEREIRA DO RÊGO, VEIGA CABRAL, RIBAS, FURTADO DE MENDONÇA e RUBINO, como as, já do período republicano, de VIVEIROS DE CASTRO, ALCIDES CRUZ, RUI, MAXIMILIANO, ARAÚJO CASTRO, até as dos atuais escritores e mestres do nosso direito público. Da mesma forma, é com extrema cautela que se há de ler o que no estrangeiro se escreveu sôbre a matéria. É que o conteúdo, a forma e o regime do poder regulamentar, nos países cuja cultura jurídica mais contribuíram para a nossa formação científica e política, são bem diversos dos nossos. O estudioso desavisado pode fàcilmente incorrer em graves erronias, se não se adverte para as distinções entre o nosso regime constitucional tradicional e o desenvolvido alhures. Certos autores mais sôfregos têm cedido à fácil tentação da tradução simplista e da transplantação acriteriosa de problemas e soluções, inadvertidos da diversidade dos regimes. Não são, certamente, os mais avisados, mas infelizmente, têm encontrado fácil e inadvertido eco. Os que sustentam a existência, entre nós, do regulamento autônomo, por exemplo, leram compêndios alienígenas de direito administrativo, esquecidos de que êste é submetido ao constitucional e sem se darem à detença de verificar que as nossas Constituições sempre dispensaram tratamento estrito ao regulamento, em contraste com o regime constitucional de outros países, onde o silêncio dos textos ensejou inteligência diversa, quando a não impôs. VÍTOR NUNES LEAL é muito claro a êsse respeito: "O exame dos textos constitucionais em cada caso concreto é indispensável, porque determinadas providências não podem ser tomadas senão em virtude de lei, e, se a respeito delas 23 não há lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sôbre o assunto tem de ser adotada em lei formal. O regulamento que dêle tratasse seria nulo por motivo, já não de ilegalidade, mas de inconstitucionalidade, porque não poderia suprir a lei onde a Constituição a exige". (Lei e Regulamento, in RDA, voI. I, p. 383). Não tem cabimento, no nosso regime, o regulamento autônomo. Os que expõe as explicações para sua existência fazem, cientificamente, demonstra- ção de erudição em matéria de direito alienígena e ignorância do nosso direito constitucional; didàticamente, prestam um desserviço, por induzirem em êrro aos inadvertidos; politicamente contribuem para reforçar o caráter ditatorial dos nossos governos, amesquinhando nossas conquistas jurídicas. Não há regulamento autônomo no Brasil porque só a lei pode obrigar (§ 2.0 do art. 150 da Carta federal) e porque nossos decretos só existem para assegurar a fiel observância das leis (art. 83, 11 da Carta federal). O regulamento - no Brasil, sempre veiculado por decreto - é inteiramente subordinado à lei, tanto positiva, quanto negativamente. Não pode contrariá-Ia, como não pode excedê-la. Não pode restringi-la, da mesma forma que não lhe é dado ampliá-la. A compreensão de seu regime jurídico, entre nós, decorre da conceituação e dos limites do poder regulamentar. 2. Consiste o chamado poder regulamentar na faculdade que ao Presidente da República - ou Chefe do Executivo, em geral, Governador e Prefeito - a Constituição confere para dispor sôbre medidas necessárias ao fiel cumprimento da vontade legal, dando providências que estabeleçam condi- ções para tanto. Sua função é facilitar a execução da lei, especificá-Ia de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la. Decreto - entendida e expressão stricto sensu - é o ato pelo qual o Presidente da República exercita suas principais funções jurídicas. Assim, é por meio dêsse veículo que exerce o ordinance pawer de que é investido pela Constituição, como Chefe de Estado e como Chefe do Poder Executivo. O ,·egulamento - "ato que encerra normas de caráter geral e permanente, para a execução das leis" (ARAÚJO CASTRO, A Nova Constituição brasileira, Rio, Freitas Bastos, 1935, p. 224) - expressão do poder regulamentar do qual é titular o Chefe do Executivo, é veiculado por meio dêsse ato administrativo, neste caso, normativo. Expedir decretos e regulamentos - na nossa tradição constitucional, aquêle é gênero veiculador desta espécie - é, mais do que munus, prerrogativa do Chefe do Executivo. Tanto é assim, que, a lei, comumente, não pode impedir àquele de exercitar êste poder. Não é dado à lei vedar a regulamentação. Seria nula a cláusula legal que impedisse ao Presidente de exercitar êste poder. Não quer, entretanto, isto dizer que tal poder seja ilimitado, ou que possa ser exercido de qualquer forma e a qualquer propósito. O uso dêste poder solene e eminente é, pelo contrário, vinculado. Depende quantitativa e qualitativamente das condições impostas pelo sistema e da própria natureza e conteúdo da lei a ser regulamentada. 24 É, pois, o poder de fazer regulamentos, por exigência constitucional, deflagrado pela existência da lei. Sem esta, não existe aquêle. Não há, portanto, regulamento autônomo, no regimé constitucional brasileiro. Sem lei, não há decreto regulamentar. O regulamento (sempre veiculado por decreto) só existe quando haja lei prévia, exigente de regulamentação. Se determinada matéria, não objeto de lei, exigir ordenação ou qualquer tipo de disciplina, ao Presidente incumbe submeter projeto de lei ao Congresso. No nosso sistema não lhe é dado disci pliná-Ia imediatamente. Em segundo lugar, conforme o conteúdo desta, pode não haver matéria nenhuma a ser regulamentada. Seria o caso de inexistir a faculdade, em hipóteses determinadas, não por impedimento normativo - que êste só poderia ser constitucional - mas por ausência de pressupostos que validassem ou justificassem seu exercício. "Há leis que independem de regulamentos para a sua aplicação. Diz-se leis auto-executáveis. Salvo dispositivo em contrário, nesta categoria estão as que conferem podêres, estabelecem garantias e prescrevem proibições". (BANDEIRA DE MELLO, O. A. PrincíPios gerais de direito administrativo, Rio, Forense, 1968, vol. I, p. 320) . Com efeito, se não houver matéria passível de regulamentação será inócuo - com o grave risco de contraditório - regulamentar. Se não couber regulamentação, pois, o regulamento será ilegal (e inconstitucional). O ato administrativo consistente na regulamentação, pode ser, como todos os demais, discricionário ou vinculado, conforme o teor da lei. Da mesma maneira, pode ser facultativo ou obrigatório, segundo o texto legal o exija - expressa ou implicitamente. A faculdade presidencial, pois, pode converter-se em dever jurídico, se a lei assim o determinar. "O poder regulamentar é o que se exerce sem criação de regras jurídicas que alteram as leis existentes e sem alteração da própria lei regulamentada" (PONTES DE MIRANDA, Comentários à Constituição de 1967, tomo 111, p. 309) . É que só a lei, no nosso sistema, pode inovar a ordem jurídica, criar (tirar do nada, dar vida) direito nôvo. Como a restrição é de natureza constitucional - inalterá·vel, por isso, sem reforma constitucional - à lei não é dado delegar competência legislativa ao Executivo. "Somente se admite que o Poder Executivo aplique a lei, se a incidência não é automática, ou que proceda à verificação e cálculos em que nenhum arbítrio lhe fique. Onde o Poder Executivo poderia dizer 2, ou dizer 3, já há delegação de poder. Onde o Poder Executivo poderia conferir ou não conferir direitos, ou só os conferir segundo critério seu ou parcialmente seu, há delegação de poder". (PONTES DE MIRANDA, Comentários à Constituição de 1967, tomo 111, p. 309) . Se assim é, com maior razão a regulamentação não pode ser exercida por órgão que não o Presidente da República. "Mais profundamente violador das regras jurídicas constitucionais seria delegar a quem não é chefe do Poder Executivo, e. g ., ao Ministro tal, à repartição tal, à comissão tal, ou Instituto tal. Isso não é admissível, mesmo sob o regime parlamentar, porque a delegação de poder legislativo é ao Gabinete, ao Presidente da República e ao 25 Primeiro Ministro, ou só a êsse, collforme se haja estabelecido na ConstituÍ- ção". (PONTES, op. cit., p. 310). 3. Ato presidencial, nitidamente inserido na esfera administrativa - muito embora de conteúdo normativo - o regulamento, como todos os demais decretos (ou, mais precisamente, como todos os demais atos veiculados por decreto) é ato administrativo formal e materialmente, e, como tal, integralmente submetido ao regime jurídico próprio daquele. Efetivamente, não só porque privativo de uma autoridade eminentemente administrativa - o Chefe da Administração Pública - como porque regido pelo regime administrativo, o regulamento é ato administrativo, ou seja "ato jurídico praticado, segundo o direito administrativo", por órgão de pessoa administrativa (CIRNE LIMA, RUI. PrincíPios, p. 88). Pois, a principal nota característica da administração, do administrador e do ato administrativo no Brasil é sujeitar-se ao princípio da relação de administração, tão magistralmente exposto por RUI CIRNE LIMA. Traduzem-se os efeitos práticos do princípio in casu, na subordinação do decreto à lei. As implicações práticas desta subordinação, no nosso direito, vêm muito bem expostas por PONTES DE MIRANDA (Comentários à Constituição de 1946, tomo UI, p. 121 e segs.; Comentários à Constituição de 1967, tomo lU, p. 309 e segs.). Para os restritos efeitos do presente trabalho, basta assinalar que a faculdade regulamentar é subordinada à lei, porque, constitucionalmente, o que lhe cabe é assegurar sua fiel execução. Por isso mesmo, sem a existência da lei, não se pode falar em regulamento, porque aquela é colocada, pela Lei Magna, como pressuposto necessário e sine qua non dêste. BANDEIRA DE MELLO sublinha muito bem as distinções formais e substanciais entre o decreto regulamentar e a lei. São suas palavras: "Segundo a matéria, a diferença está em que a lei inova originàriamente na ordem jurídica, enquanto o regulamento não a altera". (Princípios Gerais de Direito Administrativo, p. 316) . E esclarece: "Formalmente, o regulamento subordina-se à lei, pois nela se apóia como texto anterior, para a sua execução, seja quanto à sua aplicação, seja quanto à efetivação das diretrizes por ela traçadas na habilitação legislativa. Sujeita-se, então, o regulamento à lei, como regra jurídica normativa superior, colocada acima dêle, que rege as suas atividades, e é por êle inatingível, pois não pode se opor a ela". (op., loco cit., p. 316) . Tôdas as demais regras características do regime jurídico administrativo são-lhe plenamente aplicáveis, mormente o princípio da "reserva da lei", pelo qual tôda regra inaugural e primeira, na ordem jurídica, só pode conter-se em lei; além disto, tôda matéria constitucionalmente colocada como privativa da lei - de que é significativo exemplo a matéria tributária - não pode ser objeto de regulamentação, senão secundum legem. O mesmo se diga do poder de polícia, diretamente dirigido à propriedade e liberdade, cuidados no artigo 150 da Carta Magna. Interpretar a lei não é privilégio do Presidente da República. É tarefa que incumbe a todos que devem aplicar. A interpretação dada pelo decreto não tem maior autoridade do que qualquer outra. Só o Judiciário a interpreta incontrastàvelmente. 26 "Onde se estabelecem, alteram, ou extinguem direitos, não há regulamentos - há abuso de poder regulamentar, invasão da competência do Poder Legislativo". (PONTES, Constituição de 1967, tomo IH, p. 311). Por isso, "onde a lei oferece dúvida, não é ao Poder Executivo que toca varrê-la. Em todo o caso, assim como qualquer intérprete lança, com os seus argumentos, a interpretação que lhe parece acertada, o Poder Executivo pode lançar a sua, sem que daí lhe resulte qualquer poder de a impor". O poder que tem o regulamento não é mais, intrinsecamente, do que o do intérprete doutrinário, e às vêzes é menos; extrinsecamente, é êle estatalmente mais autorizado, muito embora, socialmente, nem sempre o seja," (PONTES, op. cit., loco cit.) . É magnifica, a propósito, a lição de VÍTOR NUNES LEAL: "A pretexto de facilitar a execução da lei, não pode, entretanto, o regulamento pretender fixar-lhe a interpretação de maneira conclusiva. Semelhante intuito não p0- deria jamais obrigar o Poder Judiciário, que é o intérprete autorizado da lei, no julgamento dos casos concretos que lhe são submetidos. O regulamento interpretativo valerá, pois, como subsídio doutrinário valioso e qualificado, mas não terá fôrça obrigatória nem para os particulares, que poderão recorrer às vias judiciais, nem para os juízes, que poderão deixar de aplicá-lo por entenderem que contraria disposição legal vigente. A interpretação da lei só é obrigatória quando autêntica, isto é, quando feita por outra lei., Mesmo assim, muitos autores entendem que o caso não é de interpretação, mas de formulação de regra nova, mais explícita, que se aplica obrigatoriamente não por ser interpretativa, mas precisamente, por ter fôrça de lei formal" (Lei e Regulamento, in RDA, vol. I, p. 384). O regulamento é prêso, circunscrito ao texto legal, irremissivelmente. "Prende-se em essência ao texto legal. O seu objetivo é tão somente, facilitar, pela especificação do processo executório e pelo desdobramento minucioso do conteúdo sintético da lei, a execução da vontade do Estado expressa em ato legislativo. Tanto que o seu âmbito será maior ou menor conforme menos ou mais minudente seja a lei à qual se prenda. É certo que, como a lei, reveste o aspecto de norma geral, abstrata e obrigatória. Mas não acarreta, e aqui dela se distancia, modificação à ordem jurídica vigente. Não lhe cabe alterar situação jurídica anterior, mas, apenas, pormenorizar as condições de modificação originária d'outro ato (lei) . Se o fizer, exorbitará, significando uma invasão pelo Poder Executivo da competência legislativa do Congresso. É o que resulta do sistema de divisão dos podêres, traduzido genêricamente no art. 6.0, que somente comporta as exceções constitucionalmente previstas, e de modo específico, do art. 83, n.O 11, onde se define o âmbito do poder regulamentar", na magnífica lição de SEABRA FAGUNDES (v. O contrôle dos atos administrativos pelo poder judiciário, Rio, Forense, 4.a ed., 1967, p. 35, em rodapé) . 4. A expressão do poder regulamentar - que a Constituição confere ao Presidente da República - é o regulamento, ato administrativo normativo, tendo por pressupostos a existência da lei e o cabimento técnico desta. regulamentação. É a lei, pois, um prius necessário e insubstituível. Mas, não 27 basta sua simples existência, para que se justifique o exercício desta faculdade. É ainda exigido que a lei comporte ou exija regulamentação. Mas, não é só. Como visto, são limites necessários ao regulamento a extensão da lei e seu conteúdo. É o que decorre da lição constitucional: para a sua fiel execução. A lei é primeiramente pressuposta, isto é, colocada como um pressuposto necessário. Por outro lado, tudo que não seja necessário à sua fiel execução é excessivo. Daí poder a lei ser redigida em têrmos tais que dispense regulamentação. Aí está hipótese em que a faculdade regulamentar é elidida legitimamente, sem ofensa à Constituição, que a não outorga ao Chefe do Executivo incondicionada, mas pelo contrário, vinculada à fiel execução das leis, - logicamente, quando esta execução fiel requer êste complemento. Mas, é óbvio também, que "não pode o Presidente da República regulamentar as leis, decretos e resoluções que não lhe cabe executar" (PONTES DE MIRANDA, Comentários à Constituição de 1946, tomo IH, p. 124) . É que - como se procurará demonstrar adiante - o fundamento lógico e político-administrativo do poder regulamentar reside na qualidade de responsável pelo organismo administrativo, do Presidente; demora na circunstância constitucional de ser êle o chefe do Poder Executivo e responsável pelo funcionamento de todo o aparelho não legislativo e não judicial, que, por isso mesmo, é-lhe subordinado. Por isso não pode regulamentar leis por exemplo processuais, civis ou penais. Não pode intermediar-se entre Q mandamento legal e a obediência que lhe devem os tribunais ou os particulares, nas suas relações comuns. Por isso o desembargador BANDEIRA DE MELLO - dos mais sólidos estudiosos no nosso direito público - acentua com rigor e ênfase: "O regulamento não rege relações jurídicas entre particulares, mas do Estado-poder com terceiros, sejam servidores públicos, sejam particulares". (Princípios Gerais do Direito Administrativo, Rio, Forense, 1968, p. 312). E repisa "Não interfere, entretanto, diretamente, no conteúdo das relações entre particulares, pois o seu objeto são as relações do Estado-poder com terceiros". (op. loco cit.) . É inconstitucional o regulamento que pretenda interpor-se entre dois particulares, em suas relações civis ou comerciais, como inválido aquêle que pretenda guiar o juiz, na aplicação da lei penal, ou na condução do processamento de uma causa ou recurso. Da mesma forma, será inconstitucional o regulamento que pretenda inserir-se entre a lei e a autoridade ou agente estadual e municipal, ainda que se trate de lei do Congresso. Porque, da~ duas uma: ou será lei simplesmente federal - que pode ser objeto de regulamentação - que não é obrigatória para Estados e Municípios, ou se trata de lei nacional. Neste último caso, uma regulamentação só pode ser precedida por ato normativo - lei ou decreto - estadual ou municipal, sem tolerar interferência do Presidente da República ou de quem quer que seja. Isto, por faltar ao regulamento o pressuposto de se tratar de lei que cabe ao Presidente executar. É que o Presidente só tem competência na esfera das leis da União e, nesta, no âmbito Executivo, em matérias executÍ'\'as e administrativas, na forma da lei. 28 5. O mesmo racioclOlO se pode fazer - com notável efeito didático - em relação às instruções, em confronto com os decretos normativos. É a instrução ato administrativo normativo de competência dos Ministros de Estado, competência esta que lhes é atribuída pela própria Constitui- ção (art. 87, 11). Embora se trate de faculdade constitucionalmente conferida, não podem os titulares das Secretarias de Estado usá-la arbitràriamente. É exigência peremptória do sistema que a instrução ministerial regulamente só aquêles decretos que devam ser executados pelo Ministro que a expede, ou que a matéria diga respeito, de qualquer forma, à sua pasta. São pois, pressupostos necessários da deflagração da competência para expedir instruções - constitucionalmente estabelecida em benefício dos Ministros de Estado - a existência de "lei, decreto e regulamento" (art. 87, 11); que êstes diplomas normativos comportem êste tipo de regulamentação e, afinal, que a matéria por êle versada seja inserida no âmbito geral das atribuições do Ministro. É intuitivo, com efeito, que não pode o Ministro da Educação expedir instruções "para a execução de leis, decretos e regulamentos", referentes a saúde pública, ou a matéria tributária e inversamente. Do que se vê, que também esta solene competência constitucional dos auxiliares do Presidente da República não é plena, incondicionada e discricionária; não é outorgada pura e simplesmente, para ser exercida ao alvedrio do seu titular; mas, pelo contrário - como visto - depende integralmente dos requisitos acima expostos e que são: a) existência do ato normativo superior cuja execução lhe incumbe facilitar ou prover; b) que êste normativo admita ou requeira regulamentação; c) que a matéria do ato normativo esteja inserida na esfera de atribuições do Ministro. 6. Tudo isto considerado, mais evidente fica que o poder regulamentar - veiculado por meio de decretos normativos - de que é titular o Presidente da República, não pode, ser exercido senão em esfera determinada e previamente delimitada - pelo sistema constitucional e pela lei objeto de regulamentação - assim mesmo, desde que verificado o pressuposto do seu cabimento. Só cabe regulamento em matéria que vai ser objeto de ação administrativa ou desta dependente. O sistema só requer ou admite o regulamento, como instrumento de adaptação e ordenação do aparelho administrativo, tendo em vista, exatamente, a criação de condições para a fiel execução das leis. Ora, nada tem o Presidente da República - examine-se sistemàticamente suas atribuições e competências - quer com a execução das leis processuais, quer com a correta execução das leis, comerciais e civis, por exemplo. Nada autoriza sua intromissão em relações jurídicas estabelecidas entre particulares, em matéria de direito civil ou comercial, como não dispõe êle de qualquer título para interferir na atuação do Judiciário, na função de distribuir justiça. Pelas mesmas razões, nada tem a ver com as relações, mesmo administrativas, que se estabelecem entre Estados, Municípios e seus administrados, ainda que com fundamento em lei do Congresso - neste caso, lei nacional. Por isso não pode regulamentar estas espécies legais. 29 Efetivamente, tolerar possa o Presidente da República regulamentar tôda e qualquer lei - no que importaria a interpretação lata e incondicionada da disposição do inciso II do art. 83 da Carta Constitucional - é admitir que êle se arrogue o poder de interferir nas relações civis ou comerciais, entre os particulares, intrometer-se nas funções jurisdicionais - imiscuir-se na atividade legisferante do Congresso, invadir a administração estadual e municipal, tudo isto em flagrante atentado ao sistema e seus princípios. Tal complacência logo conduziria a admitir a possibilidade de regulamentação, pelo Chefe do Executivo federal, das leis estaduais e municipais ... Na verdade, o poder regulamentar se explica, principalmente, pela circunstância de se confiar ao Presidente a superior responsabilidade na condução da administração pública, como atividade e como organismo. É em razão da circunstância de outorgar-lhe a ordem jurídica o munus de presidir, dirigir, orientar, superintender e - via de conseqüência - responsabilizar-se pelo aparelho administrativo do Estado, que lhe é conferida a faculdade de ditar normas que traduzem seus comandos, sua orientação, seus critérios de direção etc. Por outro lado, sendo sua a responsabilidade pelo fiel cumprimento à lei, na esfera administrativa, seria implícito - quando não estivesse expresso no texto constitucional - seu poder de dispor o organismo administrativo em ordem a assegurar aquêle fiel cumprimento. É como chefe da administração, pois, que, com principal razão, lhe cabe ditar normas para seu funcionamento. Na verdade, o capital fundamento lógico e político administrativo do poder regulamentar está na qualidade de condutor da administração pública do Chefe do Executivo. Pelo princípio hierárquico, o Presidente comanda todos os agentes pú- blicos administrativos, seus subordinados. Tal comando, entretanto, deve ser veiculado por decreto, sempre que terceiros - não sujeitos à hierarquia - devam ser por êles abrangidos. 7. A hierarquia é um dos princípios essenciais à organização administrativa. "Supõe subordinação de uma ou mais vontades a uma vontade superior" (CIRNE LIMA, Princípios . .. , p. 155) . Os comandos vindos do vértice se propagam sistemàticamente a tôda a cadeia hierárquica, permitindo o funcionamento coordenado do aparelho administrativo e a pronta, eficiente e harmônica ação do Executivo. "O laço da obediência unifica em tôrno de alguns indivíduos portadores da vontade do Estado, miríades de agentes, capazes de executar-lhes as decisões, em tôda a extensão necessária" (CIRNE LIMA, PrincíPios . .. , p. 155). No ápice da cadeia hierárquica está o Presidente da República - como os Governadores e Prefeitos - chefe, responsável e orientador do aparelho administrativo todo. O Presidente, sendo "o maior quinhoeiro do poder público e, de fato, a maior autoridade naciona!", no dizer de BARBALHO (Comentários à Constituição Federal Brasileira, Rio, 1902, p. 58), detém o supremo comando político, civil, militar e administrativo do País, segundo o direito. Não é o Presidente um simples funcionário público, mas "o supremo condutor político da Nação"; não é - como os funcionários - "prestador de trabalho público", mas exerce o poder de "orientar e dirigir as atividades do so Estado", (CIRNE LIMA, Princípios, p. 164); como os demais condutores po. líticos, não é "meramente prestador de energia", mas "portador de idéias" (CIRNE LIMA, p. 164) . Entre suas principais atribuições está aquela de conduzir a máquina ad· ministrativa, fazê·la funcionar e animá·la. O princípio hierárquico informa visceralmente a estrutura da Administração e permite o perfeito funciona· mento da máquina. Pois, o principal e mais solene veículo normativo mediante o qual o Presidente - Governador ou Prefeito - exercita seu poder hierárquico está no regulamento. Certas ordens ou normas que, pelo poder hierárquico, poderiam ser veiculadas por outras formas, são baixadas por meio de decreto, sempre que em sua esfera de vinculabilidade estejam abrangidos terceiros não alcançados pelo princípio hierárquico. Outra não é a inteligência dada ao assunto pelo insigne BANDEIRA DE MELLO, que explica: "... nas relações entre o Estado· poder e terceiros, surgiu a necessidade do Executivo regulamentá.la, estabele· cendo as regras orgânicas e processuais para a sua execução, através de regu· lamentos executivos" (op. loe. cit.). Porque os administradores e terceiros em geral não são colhidos pelo princípio hierárquico, mas só os agentes pú. blicos inseridos na estrutura administrativa. Muitas normas, entretanto, expedidas pelo Presidente ... ou seus auxilia· res políticos, os Secretários de Estado - para produzirem efeito ou para aI· cançarem as finalidades precípuas, precisam ser observadas por aquêles não funcionários. Daí a razão pela qual devem ser baixadas por decreto. Outras normas, cuidando da distribuição de funções entre órgãos admi· nistrativos, ou da própria estrutura dêles, por sua solenidade e importância, devem também ser objeto de decreto. Efetivamente, tôda vez que a lei cria um direito ou estabelece condições para o exercício de outro, contemplando pessoas alheias à administração, é necessária uma norma sua complementar, regulamentando.a e dispondo a forma pela qual a administração pública dará as providências que lhe in· cumbem, para plena realização da vontade legal. Ora, isto é feito pelo regu· lamento, que, além de preencher esta função, ainda tem a virtude de - desde que observados os mandamentos legais - obrigar aos terceiros, tornando não só possíveis, como fáceis, as relações e o entrosamento entre a máquina admi· nistrativa e êstes. Pois, um dos fundamentos político-administrativos do poder regulamen. tar está nesta competência - e ao mesmo tempo munus - que tem o Chefe do Executivo para conduzir superiormente o aparelho administrativo estatal. Algumas considerações práticas - imediatamente voltadas para a expe· riência ditada pela observação do funcionamento do Estado - tornam mais claras as meditações retro formuladas. A lei confere ao contribuinte o direito de eximir·se de certa obrigação acessória, desde que prove determinada circunstância. Cumpre que o regu· lamento estabeleça qual o órgão incumbido de verificar o preenchimento desta hipótese e qual aquêle capaz de declarar a isenção, produzindo, assim, o efeito desejado pela lei. 31 Não é próprio da lei - nem se compadece com a generalidade do seu enunciado - entrar em minúcias. Limita-se a criar o tributo e enunciar o prazo em que deve ser recolhido. Ao regulamento incumbe prescrever onde poderá ser satisfeita a exigência legal, qual o funcionário que receberá os documentos respectivos, quem os examinará, quais os papéis a serem preenchidos e de que forma, etc. Porque, é exigência da organização burocrática e requisito do racional, eficiente, seguro e expedito funcionamento das repartições, que os administradores sejam recebidos dentro de determinado horário, que os documentos, fichas e outros papéis sejam padronizados - segundo a conveniência da Administração - que as formalidades sejam uniformes e observadas por todos. Ora, esta matéria tôda não é, de regra, objeto de qualquer cuidado legal. Pelo contrário, vai ser decidida por decretos, instruções e até mesmo portarias e ordens de serviço. O que cabe à lei é - regra geral - estabelecer os direitos e obrigações. Como reconhecê-los, documentá-los, autenticá-los, dar-lhes condições de serem reconhecidos solenemente, etc., é já matéria regulamentar. Daí porque, dizermos que não cabe regulamentação nas hipóteses em que a norma maior - Constituição diante da lei; esta diante do decreto; êste diante das instruções e assim por diante - proíbe peremptoriamente ou concede algo incondicionalmente. É que, na maioria das vêzes, nada há aí a regulamentar. Nestes casos, de regra, a regulamentação adiará o gôzo de um direito legal - o que é vedado - ampliará ou restringirá seu conteúdo, ou criará condições e requisitos não previstos. Se a lei concede, por exemplo, anistia, não há o que ser exigido ou previsto pelo regulamento. Se a lei dá, incondicionalmente, certa faculdade, não há o que ser objeto de regulamentação, em regra. A regulamentação, para não exceder sua órbita, determina-se por sua finalidade. Existe para adequar a máquina administrativa à fiel observância das leis (quando lhe incumbe fazê-lo sOzinha, independentemente de provocação, colaboração ou participação de terceiros) , ou aparelhá-la a assegurar a mesma observância (quando deva fazê-lo concomitantemente, ou em colaboração com terceiros) . 8. Ao elaborar o regulamento o Presidente deve interpretar a lei. Esta interpretação é vinculante para os funcionários do Executivo, por causa da subordinação hierárquica. Não o é, entretanto, para terceiros ou para o Poder Judiciário. A interpretação dada pelo Presidente à lei não é mais autorizada do que qualquer outra, doutrinária ou judicial. Se fôr incorreta, pode ser impugnada em juizo. É que o direito está na lei - no nosso regime - e só esta cria direitos e obrigações. Só esta "obriga alguém a fazer ou não fazer" (art. 150, § 2.°, da Constituição federal) . Por isso se diz que o decreto não inova a ordem jurídica. Não pode alterá-la. Nada pode criar ou extinguir. Seu papel é assegurar, na esfera administrativa, o fiel cumprimento das leis. 32 CONCLUSõES 1 . O regulamento, no Brasil, é veiculado por decreto normativo, do Chefe do Poder Executivo (Presidente da República; Governador do Estado e Prefeito do Município) . 2. O regulamento é ato administrativo normativo, de natureza infra-legal. 3. No Brasil, não há regulamento autônomo; deve ser lida com cautela a doutrina alienígena, sôbre a matéria, em razão desta essencial diversidade. 4. O regulamento só é válido quando serve à fiel execução das leis. 5. É inconstitucional e nulo o regulamento ultra e extra legem. 6. A faculdade regulamentar, prevista no inciso lI, do art. 83, da Carta Constitucional vigente - que não convém chamar de "poder" regulamentar, como cabe alhures - não é plena e incondicionada, mas, sistemàticamente limitada. 7. Para que o regulamento seja válido, é preciso que haja previamente uma lei e 8. que esta lei comporte regulamentação. Se a lei fôr auto-executável, o regulamento é abusivo e nulo. 9. O regulamento não inova a ordem jurídica; vale dizer: nada cria de nôvo; apenas dá disposições administrativas, tendentes à fiel execução da lei; não erige norma nova; apenas adequa os órgãos administrativos para bem cumprirem ou permitirem o cumprimento da lei. 10. Não pode o Executivo fraudar a lei, protelando a sua regulamentação, quando aquela o exigir, expressa ou implicitamente (hipóteses de lei que remete à regulamentação ou de lei não auto-executável) . 11 . A regulamentação é privativa do Chefe do Poder Executivo; outros órgãos não podem exercê-la; nulo é o regulamento expedido por órgãos que não o Presidente. 12. Nem mesmo a lei pode deferir a órgãos, que não o Presidente da Repú- blica, a faculdade de regulamentar. 13 . N em mesmo a lei pode ampliar ou restringir a faculdade regulamentar; suas balisas são constitucionais. 14. A lei pode fixar prazo para o exercício da competência regulamentar. 15. A interpretação da lei, expressa no regulamento, não é vinculante senão para os subordinados hierárquicos do Presidente da República; não é mais autorizada do que qualquer outra, doutrinária ou jurisprudencial; esta, pelo contrário, sempre sobrepuja a primeira. 16. O Presidente da República não pode regulamentar lei que não lhe caiba executar; o mesmo se diga do Governador e do Prefeito. 17. Não cabe, pois, regulamento de leis processuais, civis, penais, etc. Só matéria administrativa comporta regulamentação. 33 18. A justificação da faculdade regulamentar, no Brasil, é exclusivamente a responsabilidade, constitucionalmente cometida ao Presidente da República, pela condução do aparelho administrativo. 19. O fundamento de sua colocação nas mãos do Chefe do Poder Executivo (federal, estadual ou municipal) é o poder hierárquico que êste detém; o regulamento é o principal veículo do poder hierárquico. 20. O regulamento não pode dispor sôbre relações entre particulares (direito privado) ou entre o Judiciário e terceiros; só sôbre as relações entre o Executivo e os administrados. 21. O Presidente só tem competência regulamentar na esfera das leis da União; e, nesta, no âmbito do Executivo; e só em matéria executiva ou administrativa. 22. Só cabe regulamento, pois, em matéria que vai ser objeto de ação administrativa, com esta relacionada, ou desta dependente. 23. O regulamento, no Brasil, é mero instrumento de adaptação e ordenação do aparelho administrativo, tendo em mira a criação de condições para a fiel execução da lei. 24. Pelo regulamento, o Chefe do Executivo - exercitando concomitantemente seu poder hierárquico - regula as relações secundárias e meramente formais entre os funcionários e os administrados, entre a Administração e os administrados, por ocasião da prática de atos de obediência às leis. 

Fonte :

http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/32548/31364

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